sábado, 3 de julho de 2010

Nicanor Parra




Colou-se-me a língua ao palato.
Tenho uma sede ardente de expressão.
Porém não posso construir uma frase.
Já se cumpriu a maldição da minha sogra:
Colou-se-me a língua ao palato.

O que estará a acontecer no inferno
Que se me põem as orelhas vermelhas?

Tenho uma dor que não me deixa falar.
Posso dizer palavras isoladas:
Árvore, árabe, sombra, tinta-da-china,
Porém não posso construir uma frase.

Posso apenas manter-me de pé
Estou feito num cadáver ambulante
Não suporto nem a água da torneira.

Colou-se-me a língua ao palato.
Não suporto nem o ar do jardim.

Deve estar a passar-se algo no inferno
Porque estão a arder-me as orelhas
Está a sair-me sangue das narinas!

Sabem o que se passa com a minha noiva?
Surpreendia-a beijando-se com outro
Tive que dar-lhe um bom sermão
Caso contrário o tipo desflora-a.

Mas agora quero divertir-me
Começar a cavar a minha sepultura
Quero dançar até cair de morto
Mas não me chamem de bêbado!
Vejo perfeitamente onde ponho os pés
Vêem como posso fazer o que me agrada?
Posso fazer o quatro
Posso assobiar uma melodia imaginária
Posso dançar uma valsa imaginária
Posso beber um copo imaginário
Posso dar-me um tiro imaginário.

Além disso, hoje faço anos
Ponham todas as cadeiras à mesa
Vou dançar uma valsa com uma cadeira
Colou-se-me a língua ao palato.

Eu ganho a vida como posso
Ponham todas as cadeiras à mesa
Não privo os meus amigos de nada
Ponho tudo à sua disposição
─ Podem fazer o que bem entenderem ─

Mesa à disposição dos amigos
Bebida à disposição dos amigos
Noiva à disposição dos amigos
Tudo à disposição dos amigos.

Mas não me venham com abusos!

Que o álcool me faz delirar?
A solidão faz-me delirar!
A injustiça faz-me delirar!
O delírio faz-me delirar!

Sabem o que me disse um capuchinho?
Nunca comas doce de pepino!
Sabem o que me disse um cristão?
Não limpes o cu com a mão!

Colou-se-me a língua ao palato.


Nicanor Parra, de Versos de Salón (1962)
Versão de HMBF

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