domingo, 27 de junho de 2010

Cultura africana

Vamos ler alguma coisa, vamos empregar bem o nosso tempo.


Somos todos migrantes

Tu que passas e te esqueces de que todos nós aqui estamos de passagem, tu que segues em frente sem te virar para trás porque essa é a ordem que te gritam, tu, meu conterrâneo, meu contemporâneo, deves ser, podes decerto ser, filho, pai, neto, avô, vizinho, amigo, de um, dois, dez ou mais migrantes. És descendente ou progenitor, serás porventura antepassado, de alguém que, ao olhar o monte, ao olhar o oceano, quis, quer e quererá ir ver do outro lado. A terra portuguesa que pisas sempre foi terra de partidas. E de partidas dolorosas. Porque o pão-nosso de cada dia, implorado em rezas, conquistado pelo suor do rosto, aqui amiúde escasseou, aqui tem sido mal repartido. Porque fomos ilha orgulhosamente só e submissa, governada por tiranos de toda a sorte. Porque fomos desgovernados com o nosso cobarde consentimento.
Tu que passas ao lado desse outro grito que te haveria de varar de cimo abaixo, pára agora uns instantes para pensar. Como pode um português – seja ele mísero, remediado ou abastado – ignorar o destino dos que aqui chegam em busca de porto de abrigo, em busca de trabalho sem olhar ao esforço e aos maus-tratos, em busca de um lugar à sombra enquanto o sol não nasce para todos?
Os marroquinos que as autoridades portuguesas expulsaram pela calada da noite, depois de lhes terem arrancado cinicamente o perigoso segredo da sua travessia clandestina, são uma parte de ti, uma parte da tua história. E não me venhas com histórias de que não tens história, de que a história são os outros que a escrevem, de que já não há história e de que vivemos agora na eterna capitalização do nosso pequenino contentamento.
O teu coração ficou fechado naquele camião frigorífico que, atravessando a tarde ardente de Castela, transportava um transmontano para os rigores da cidade luz? O teu coração ficou enterrado no caixão de pinho dum soldado analfabeto com terra nas botas que foi matar «turras» para uma angola-é-nossa e nem percebeu de que lado chovia a fúria das balas?
Mostra que não tenho razão. Mexe o rabinho (todos temos um), mexe as perninhas (não as da marioneta, as tuas), mexe os cordelinhos (se gozas do privilégio de ter nas mãos algum fio da meada). Mexe-te para mostrar que não estás de acordo com a maneira chocante como um bando de tristes executantes aplicam os ditames de uma Europa colada a cuspo e que por isso escarra desprezo e ódio naqueles que, mãos vazias, bolsos rotos e coração aos saltos, à sua porta se apresentam.
Regina Guimarães, em Jogos Sem Fronteiras





“Que atire a primeira pedra quem não tenha manchas de imigração na sua árvore genealógica... assim como na fábula do lobo mau que acusava o inocente cordeiro de escurecer a água do riacho de onde ambos bebiam. Se tu não emigraste emigrou o teu pai, e se o teu pai não necessitou de mudar de sítio foi porque o teu avô antes não teve outro remédio se não ir, carregando a casa às costas, em busca da comida que a sua própria terra lhe negava. Muitos portugueses (e quantos espanhóis) morreram afogados no rio Bidasoa quando, pela noite escura, tentavam alcançar a nado a outra margem, onde se dizia começar o paraíso de França. Centenas de milhares de portugueses (e quantos espanhóis) tiveram que se introduzir na culta e civilizada Europa, para lá dos Pirenéus, em condições de trabalho infames e salários indignos. Os que conseguiram suportar a violência de sempre e as novas privações, os sobreviventes, desorientados no meio de uma sociedade que os desprezava e humilhava, perdidos em idiomas que não podiam entender, foram pouco a pouco construindo, com uma renúncia e um sacrifício quase heróico, moeda a moeda, cêntimo a cêntimo, a fortuna dos seus descendentes. Alguns desses homens, algumas dessas mulheres, não perderam, e não quiseram perder, a memória do tempo em que padeceram de todos os vexames do trabalho mal remunerado e de todas as amarguras do isolamento social. Que honestos agradecimentos lhe sejam dados por conservar o respeito
que deviam ao seu passado. Muitos outros, a maioria, cortaram as pontes que os uniam àquelas horas sombrias, envergonharam-se de terem sido ignorantes, pobres, e por vezes miseráveis, comportaram-se como se a vida decente só tivesse verdadeiramente começado
quando, por fim e num felicíssimo dia, puderam comprar o seu próprio automóvel. Esses serão os que estarão dispostos a tratar com idêntica crueldade e idêntico desprezo os imigrantes que atravessam esse outro Bidasoa, mais largo e mais fundo que é o Estreito de Gibraltar, onde os
afogados abundam e servem de pasto aos peixes, se as marés e o vento não preferirem empurrá-los para a praia até que a guarda-civil apareça e os leve. Aos sobreviventes dos novos naufrágios, aos que puseram os pés em terra e não foram expulsos, espera-os o eterno calvário da exploração, da intolerância, do racismo, do ódio à pele, da suspeita, do envelhecimento moral. Aquele que antes foi explorado e que perdeu a memória de o ter sido acabará explorando outro. Aquele que antes foi explorado e finge ter-se esquecido refinará a sua própria capacidade de desprezar. Aquele a quem ontem humilharam humilhará hoje com mais rancor. E ei-los aqui, todos juntos, atirando pedras a quem chega a esta margem do Bidasoa como se eles nunca tivessem emigrado, ou os seus pais ou os seus avós, como se nunca tivessem sofrido de fome
e de desespero, angústia e de medo. Na verdade, há maneiras de ser felizes que são simplesmente odiosas.”

José Saramago, prólogo do livro Moros en la Costa de Juan José Téllez


http://www.buala.org/pt/da-fala

http://www.radioleonor.org/?page_id=40

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