"Deixo aqui um excerto da carta “Bom senso e bom gosto” de Antero de Quental. Um registo que marcou uma época de revolução ideológica no tecido social português dos finais do século XIX."
CARTA
AO EXCELENTISSIMO SENHOR
ANTONIO FELICIANO DE CASTILHO
POR
Anthero do Quental
(...)
“A este primeiro motivo, que é um direito, uma faculdade só, accresce um outro, e mais grave e mais obrigatorio, porque é um dever, uma necessidade moral. É esta força desconhecida que nos leva muitas vezes, ainda contra a vontade, ainda contra o gosto, ainda contra o interesse, a erguer a voz pelo que julgamos a verdade, a erguer a mão pelo que acreditamos a justiça. É ella que me manda fallar. Não que a justiça e a verdade se offendessem com v. ex.ª ou com as suas apreciações. Verdade e justiça estão tão altas, que não têm olhos com que vejam as pequenas cousas e os pequenos homens das infimas questiunculas litterarias d'um ignorado canto de terra, a que ainda se chama Portugal. Não é isso o que as offende. Mas as idéas que estão por de trás dos homens; o mal profundo que as cousas apenas miseraveis representam; uma grande doença moral accusada por uma pequenez intellectual; as desgraças, tanto para reflexões lamentosas, d'esta terra, reveladas pelas miserias, tão merecedoras de despreso, dos que cuidam dominal-a; (…) No peito dos outros, dos que andam de capella em capella na lida afanosa de incensar cada dia todos os idolos, dos que fazem da gloria uma bastilha para aventureiros levarem de assalto, e não pulpito aonde se suba com respeito e amor, no peito d'esses não habita mais do que ambição, vaidade, endurecimento e miseria. Esses lisongeiam os grandes; e os grandes dão-lhes a mão para que subam, e desprezam-nos depois. Lisongeiam as maiorias; e as maiorias inconstantes lançam-lhes no regaço um pouco de ouro e algum applauso de momento, e depois passam e esquecem. Afagam todas as vaidades; e têm em cada vicio humano um capital, cujo juro dissipam em quanto vivos, porque essa moeda corrompida para mais ninguem serve. Emfim, nos quinze ou vinte annos em que dão que falar ás gazetas, aos botequins, aos gremios, a todos os vadios, a todos os futeis, folgam, vivem alegres e esquecidos de tudo quanto não seja a satisfação do que ha no homem de mais pequeno—a vaidade e o interesse.(…)
Anthero do Quental
Coimbra 2 de Novembro de 1865
IMPRENSA DA UNIVERSIDADE
1865
http://www.gutenberg.org/files/30070/30070-h/30070-h.htm
lido em
http://voxnostra.blogspot.com/
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